#2 Encontro Videográfico: 4, 5 e 6 de Fevereiro


João Leonardo




Another Autointerview , Mini Dv, PAL, 16:9, Cor, Som Stereo , 12’20’’, 2009


Conversa com Maria do Mar Fazenda dia 4, 5ª feira, às 19h





I am question oriented
Catarina Marto


O vídeo de João Leonardo (J.L.) que se mostra na Téléthèque é uma versão screening ou para um só ecrã de “Autointerview”,  uma instalação vídeo para dois monitores que se pôde ver há mais ou menos um ano na sua exposição individual “Timeline” na Galeria 111, e que levou ao convite a J.L. a vir “conversar” connosco.  Desta feita, o título do vídeo (esta é a sua primeira exibição pública) é “Another Autointerview”, homónimo do texto da autoria de Lucas Samaras (Grécia, 1936), a partir do qual foram feitos ambos os vídeos.
A presente obra videográfica conjuga pelo menos dois ingredientes que já conhecemos de obras anteriores de J.L.: a sua figura (ou do seu próprio corpo) enquanto protagonista principal e único dos vídeo-performance e a apropriação dum texto de artista (o outro texto tendo sido uma carta de Sol Lewit a Eva Esse).
As duas principais questões formais com as quais inevitavelmente nos confrontamos perante este específico “Another Autointerview”, são as seguintes: as implicações de fazer duas versões dum mesmo trabalho e a apropriação dum texto de artista.

A primeira questão, confesso, causou-me algum desconforto no início: pensar que ia ser feita uma versão de uma instalação vídeo para dois monitores (por sinal admirável) que “encaixasse” num só monitor e cuja circulação se encontrasse assim facilitada. Na realidade, esta questão levantou-se-me antes de ver o vídeo e de perceber que as duas peças foram feitas em simultâneo. Torna-se portanto uma falsa questão aqui. A questão dos formatos standart é certamente válida mas vamos deixá-la para outra ocasião pois neste caso concreto, uma outra “Autointerview” vem prolongar a questão nodal deste vídeo: a duplicidade. Não se pode dizer aqui que uma versão dum mesmo trabalho resulta melhor do que a outra. São simplesmente duas versões diferentes dum mesmo tema. O próprio J.L. referiu-se a esta obra como a “versão dos gémeos”. Como se pode ver nos stills, são dois J.L. sentados frente a frente num formato de entrevista em que um encarna as perguntas e o outro as respostas. Pode-se dizer talvez que a presente versão tem uma dimensão teatral, é simultaneamente mais verdadeiramente falsa e ganha com o bom e subtil jogo de actor de J.L. na declarada impaciência consigo próprio, por exemplo. Já a primeira versão ganhava com o surpreendente e original dispositivo com dois monitores, bem encontrado e solucionado. Ambos beneficiam da leitura com uma excelente voz. Foi assim de maneira duplamente dupla que J.L. pensou a encenação – é mais justa a palavra encenação do que apropriação – do texto de 1971 de Lucas Samaras.

Aproximamo-nos e passamos então à segunda questão de forma mais aguda: o que vem acrescentar uma versão (neste caso duas versões)  vídeo dum texto que por si só é genial? Antes de mais, não fosse este trabalho e muitos de nós certamente não viríamos a conhecer o texto com o qual nos podemos certamente identificar. Lucas Samaras não é um artista muito referenciado. No caso de J.L., a identificação expande-se ao resto do trabalho de Lucas Samaras de quem importa dizer (para quem não conheça o seu trabalho) que construiu e constrói obsessivamente a sua longa e prolífica obra, única e exclusivamente sobre o self. São milhares de auto-retratos, sobretudo em desenho e fotografia (manipulada a maior parte das vezes, mesmo antes do Adobe Photoshop que entretanto adoptou) em que vemos conscientemente convocadas as figuras de Narciso, tanto a flor como a personagem mitológica, o cisne, e também o santo ortodoxo, entre outros. A presença da imagem da sua própria figura é uma invariável. As suas raras instalações são em espelhos e, aqui, vemos uma versão texto do seu trabalho. O texto é denso. O artista faz perguntas difíceis e fundamentais a si próprio, como por exemplo “What are you?”, repetindo a pergunta até obter uma resposta satisfatória. O humor do texto prende-se a este último factor e também à justaposição duma espécie de auto-psicanálise com perguntas mais prosaicas como “Do you have any animals?”. Na realidade, como não podia deixar de ser, neste diálogo, o entrevistador e o entrevistado são altamente cúmplices: a pergunta é feita para dar lugar a uma ou várias respostas previamente desejadas. A interpretação de João Leonardo é a exteriorização e concretização deste diálogo interno e introspectivo, à sua maneira depurada e minimal num cenário mais sombrio do que o habitual nos seus vídeos. O resultado é uma encenação Beckettiana – importa salientar aqui que não existem indicações cénicas no texto original – onde se roça o absurdo no campo da metafísica e em que o falso é assumido e sobressai: não há nada nem de espontâneo, nem natural nesta(s) versão videográfica de Another Autointerview. A leitura videográfica deste texto exige o visionamento do vídeo repetidas vezes. A pertinência e intensidade de algumas perguntas e respostas não permitem assimilar a pergunta seguinte. O ritmo imposto pelo vídeo ao texto realça a sua construção e a eficácia.

Voltemos à figura invulgar dos gémeos que aqui nos propõe e incarna J.L. e que inevitavelmente nos propulsa para uma estranheza (uncanny) maneirista. Trata-se da mesma estranheza ou peculiaridade que inspiram as imagens destiladas pelo músico Aphex Twin, ou os actuais chefes de estado polacos Lech e Jaroslaw Kaczynski ou as artistas gémeas Jane e Louise Wilson com uma exposição patente neste momento no CAM. Estamos sem dúvida aqui perante uma folie du voir descrita por Christine Buci-Gluksmann muito pós-moderna no seu desdobramento e falsificação da imagem possibilitada pela sofisticação e acessibilidade das ferramentas técnicas actuais. Os gémeos sugerem também a (desejavelmente) distante antevisão do clone ou, pelo menos, a possibilidade de incarnar diferentes personalidades na dimensão “ecrãnica”. Ou ainda, a natural e antiga multiplicidade do eu ... E eis porque o auto-retrato muitas das vezes leva sobretudo a falar de todos os eus. Como J.L. realça gestualmente no vídeo numa pergunta dele para o seu outro eu: “Why don’t you keep your problems and your pleasures to yourself? Because I’m universalizing them.” O corpo de J.L. é menos veículo para a realização de auto-retrato e mais matéria para tratar dos temas que lhe interessam e que não se confinam a ele próprio. Estamos perante um auto-retrato na medida em que qualquer trabalho artístico é um auto-retrato.
J.L. tem levado a cabo o difícil trabalho de, conscientemente, se questionar e expor problemas e raciocínios íntimos e, para a maior parte, inconfessáveis, que são no entanto, pelo menos um ou outro, comuns a todos, aliviando a solidão de cada um por uns instantes. Aqui torna-se mais fácil do que em trabalhos anteriores porque tem um (ainda outro) cúmplice: Lucas Samaras.


Bibliografia:
-Buci-Glucksmann, Christine, “La folie du voir, Une esthétique du virtuel, Coll. Débats, Editions Galilée, 2002, Paris
-“Theories and documents of contemporary art: a sourcebook of artists’writings”, edited by Kristine Stiles, Peter Howard Selz, Berkeley, Los Angeles, London, UCP, cop.1996
Catálogos : 
-“Lucas Samaras - Objects and Subjects, 1969-1986”, essays by Thomas McEvilley, Donald Kuspit and Roberta Smith, Denver Art Museum, ed. Marlene Chambers, Abbeville Press, 1988, NY 
- “Unrepentent ego - self-portraits of Lucas Samaras”, Martha Prather, with an essay by Donald Kuspit, Whitney Museum of American Art, NY, 2003
- “Photofictions”, Waddington Galleries, designed by Tomo Makiura, catálogo de exposição de  17 Março a 17 Abril 2004, Londres
-“Hors limites, l’art et la vie, 1952-1994”, conception Jean de Loisy, coordination Françoise Marquet, Centre Georges Pompidou, Musée National d’art moderne - Centre de création industrielle, 1994, Paris


Notas Biográficas:
João Leonardo (Odemira, 1974)
Vive e trabalha em Malmö. Concluiu o Mestrado na Malmö Art Academy em 2009. A sua primeira formação é em História da Arte (licenciatura em 1996, FCSH), posteriormente estuda e trabalha na área do design gráfico em Sidney. De 2002 a 2005, de volta a Lisboa, frequenta a Maumaus – Escola de Artes Visuais e obtém o prémio EDP em 2005. Expôs individualmente na Galeria 111 em Lisboa, em 2006 (As Time Goes By...) e em 2009 (Timeline) e, na KHM Gallery, em Malmö em 2008 (Time after Time). Participa em numerosas exposições, em diversos pontos do globo, desde 2004.
João Leonardo tem vindo a construir um trabalho em diversos medias (vídeo/performance, fotografia, instalação), formalmente e conceptualmente depurado, rigoroso, num percurso coerente e corajoso, em permanente auto-questionamento. As temáticas recorrentes do tempo e do coleccionismo ligam-se ao seu próprio corpo biológico sistematicamente posto à prova nos seus “limites para alem da moral”, num movimento de ciclo fechado ou de interior exteriorizado ou, ao invés, de um exterior interiorizado. 

Maria do Mar Fazenda (Lisboa, 1977)
Maria do Mar Fazenda, curadora independente e crítica de arte. Licenciada em Belas Artes pela Slade School of Fine Art, UCL, Londres, terminou a sua Pós-Graduação em Estudos Curatoriais pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em 2005.  Enquanto curadora realizou, entre outros, a representação portuguesa na 10ª edição da Bienal Internacional de Gyumri, na Arménia; Finisterra (2008), no Centro Cultural de São Lourenço, Algarve; Só é Possível se formos 2  (2007), Fundação Serralves e Centro de Artes de Sines, Sines; Trabalhar Cansa (2007), Galeria Arte Contempo, Lisboa; A Hurtadillas (2004), Galeria Los 29 Enchufes, Madrid. Escreve mensalmente na revista "L+Arte" (Lisboa) e, regularmente, textos para catálogos e revistas especializadas, colaborando igualmente com diferentes entidades do ensino superior.


...........................................................................................................



I am question oriented
Catarina Marto

João Leonardo (J.L.) video on show at Téléthèque is a screening version, or a version for one single monitor, of the work “Autointerview”, a video installation for two monitors, that was presented about a year ago in his solo exhibition “Timeline” at Galeria 111. This led to the invitation made to JL to  "Talk" with us. In this new version, the title of the video (this is its first public display) is "Another Autointerview" - named after the text written by Lucas Samaras (Greece, 1936), from which both videos were made. This videographic work combines at least two ingredients that are known from previous works of JL: his own figure (or his own body) as the main character and single actor of the video-performance, and the appropriation of an artist text (the other text was a letter from Sol Lewit to Eva Hesse). The two main formal questions that we are inevitably confronted with this specific work “Another Autointerview”, are as follow: the implications of making two versions of the same work and the appropriation of an artist text


The first question, I must confess has caused me some discomfort in the beginning: to think that one was about to do a version of a video installation (an admirable one) that "fit" in one monitor so that its circulation would be somehow easier. In fact this issue arose on my mind before I see the video and realize they were made simultaneously. So here we have a false question. The issue of the standard formats is certainly valid, but lets leave it for another occasion because in this specific case, another  “Autointerview” extends the nodal point of this video: duplicity. We can’t really say here that one version of the same work works better than the other. They are simply two different versions of the same theme. JL´s himself has refered to this version as the "twins version". As you may see in the video-stills, there are two JL´s seated face to face, in an interview format, in witch one embody the questions and another the answers. Maybe one can say that this version has a more theatrical dimension, it is simultaneously more truly false and it benefits from the good subtle actor´s play of JL, in its declared impatience with himself. The first version, on the other hand, would win with the surprising and original device of the two monitors. Both versions benefit from the reading of an excellent voice.  Thus it is in this double-duplication that JL though the staging  – it is fairer the word staging than appropriation  –  of the 1971 text by Lucas Samaras.

We then approach and sharply step into the second question: what does one video version (actually two in this case) adds to a text that is genius in itself? First, if it was not this work and maybe many of us would possibly never know a text in which we can certainly identify. Lucas Samaras is not an artist much referenced.  In JL´s case, the identification is extended to Lucas Samaras work, and one should say (for those who do not know his work) that he has obsessively built his long and prolific work, solely and exclusively on the self. Thousands of self-portraits, mostly in drawing and photography (often manipulated, before Photoshop was invented - and in the meantime adopted) in which we consciously see evoked the figure of Narcisus, both the flower and the mythological character, the swan and also the orthodox saint, among others. The image of himself is an invariable presence. His rare installations are made with mirrors and here we have a text version of his work. The text is dense. The artist asks difficult but fundamental questions to himself, like “What are you?”,  repeating the question until he gets a satisfactory answer. The text´s humor relates to this last factor and also to the overlapping of a kind of auto-psychoanalysis, with prosaic questions like “Do you have any animals?”. In fact, as it might be expected, in this dialog, the interviewer and the interviewed are highly complicit: the question is made to give room for one or several previously desired answers. JL´s interpretation is the externalization and implementation of this internal and introspective dialog, on its own purified and minimal way, in a set that is a bit somber than normal on his videos. The result is a Bekett-inspired staging  – one must notice that there is no scenic indications on the original text  – which approached on the absurd in the field of metaphysics and were the false is assumed, it stands: there is nothing neither spontaneous, nor natural in this (these) videographic version(s) of Another Autointerview. The videographic reading of this text requires viewing the video repeatedly. The relevance and intensity of some questions and answers do not allow to assimilate the next question. The rhythm imposed by the video to the text underlines its construction and effectiveness

Lets return to the unusual figure of the twins, proposed and embody by JL, and that necessarily propel us for an uncanny, mannerist strangeness. This is the same strangeness or peculiarity that inspire the images distilled by the musician Aphex Twin, or the current heads of state of Poland, Lech and Jaroslaw Kaczynski or the artists twins Jane and Louise Wilson with an exhibition currently on CAM. We undoubtedly have here a folie du voir described by Christine Buci-Gluksmann, very postmodern in its unfolding and forgery of the image made possible by the sophistication and accessibility of current technical tools. The twins also suggest a (hopefully) distant preview of the clone or, at least, the possibility to embody different personalities in the "screen" dimensionOr still, the natural and ancient multiplication of the self... And this is why the self-portrait often leads mainly to talk about all the selves. As JL gesturally enhances on the video: “Why don’t you keep your problems and your pleasures to yourself? Because I’m universalizing them.” 
JL has undertaken the difficult task of consciously question and expose intimate problems and reasonings, most of them unspeakable, but who are however, at least one or another, common to all, relieving the loneliness of each for a moment. Here it is easier than in previous works because it has a (yet another) accomplice: Lucas Samaras.



Bibliography
-Buci-Glucksmann, Christine, “La folie du voir, Une esthétique du virtuel, Coll. Débats, Editions Galilée, 2002, Paris
-“Theories and documents of contemporary art: a sourcebook of artists’writings”, edited by Kristine Stiles, Peter Howard Selz, Berkeley, Los Angeles, London, UCP, cop.1996
Catálogos : 
-“Lucas Samaras - Objects and Subjects, 1969-1986”, essays by Thomas McEvilley, Donald Kuspit and Roberta Smith, Denver Art Museum, ed. Marlene Chambers, Abbeville Press, 1988, NY 
- “Unrepentent ego - self-portraits of Lucas Samaras”, Martha Prather, with an essay by Donald Kuspit, Whitney Museum of American Art, NY, 2003
- “Photofictions”, Waddington Galleries, designed by Tomo Makiura, catálogo de exposição de  17 Março a 17 Abril 2004, Londres
-“Hors limites, l’art et la vie, 1952-1994”, conception Jean de Loisy, coordination Françoise Marquet, Centre Georges Pompidou, Musée National d’art moderne - Centre de création industrielle, 1994, Paris.