#3 Encontro Videográfico: 11, 12 e 13 de Março


Sara & André




S/Título (Natureza Morta), André & Sara, 16mm transferido para DVD, s/som, cor, 1'58''.


Conversa com Gonçalo Pena dia 12, 6ª feira, às 19h



I

Qu’importe qui parle?
Foucault, Michel, Qu’est-ce qu’un auteur?, Dits et écrits (1969), tome 1 texte n.º69, Gallimard, 1994, Paris, p.812

Quando vamos ver uma exposição de Sara & André o mais provável é depararmo-nos com obras que não são deles. Claim to fame é o postulado inicial do trabalho que têm vindo a desenvolver no qual se vai formando uma representação ficcionada deles próprios, de Sara & André numa transdiscursividade. A criação da Fundação Sara & André para além de salientar, não sem ironia, o surgimento de numerosas fundações de arte em Portugal num determinado período, é uma forma de enquadrar a colecção de retratos que “encomendam” a outros artistas. Este processo leva ao trabalho de criação colaborativo e à constituição duma rede de autores.
O vídeo Sem título (Natureza morta), uma obra desta feita assinada por André & Sara, foi realizado em colaboração com Lígia Afonso, no decorrer duma residência na Galeria Zé Dos Bois em 2008-2009 e é um fragmento dum outro vídeo Film About obra colectiva realizada por alguns dos artistas residentes (Lígia Afonso, Tiago Baptista, Von Calhau, Hugo Canoilas, Catarina Dias, Gonçalo Pena e António Poppe).

O liberalismo até pode ter inventado o indivíduo, mas inventou-o desde logo mutilado.
Appel, Proposta 4, (2003, sem autor) traduzido do francês pelas Edições Antipáticas, Lisboa, Abril 2008.

Para além de desmontarem a noção de autoria — na sua origem ligada a questões jurídicas e de propriedade — Sara & André têm vindo a dar forma a um o corpo de trabalho que é igualmente um sintoma do facto de actualmente a inquietação latente será como constituir a colectividade e sua articulação, mais do que a individualização. Indivíduo e autoria são noções que não dispensamos, mas é bom lembrar que estes foram inventadas noutros tempos e respondiam a necessidades de contextos específicos.


II

Alors que dans le strié les formes organisent une matière, dans le lisse des materiaux signalent des forces ou leur servent de symptômes.

C’est aujourd’hui et dans les sens les plus divers, que se poursuit l’affrontement du lisse et du strié, les passages, alternances et superpositions.
Deleuze, Gilles et Guattari, Félix, Le lisse et le strié, Mille Plateaux, Capitalisme et Schizophrénie 1, l’ANTI-OEDIPE, Éditions de Minuit, 1980, Paris, pág.598 e 602.


O vídeo não é o meio usualmente escolhido por Sara & André e em Sem título (Natureza morta) é na realidade uma forma de chegar à pintura, pela qual, segundo os próprios, têm vindo a sentir um “crescente interesse”. No plano sequência de dois minutos desfilam reconstituições de composições inspiradas em pinturas de Van Gogh, Courbet, Cézanne, Richter e ainda Leer e Stoskopff (Natureza-Morta com Copos num cesto, 1644) cujo o original por coincidência temos o privilégio de poder ver neste momento na exposição “A perspectiva das coisas, a Natureza Morta na Europa”, na Fundação Calouste Gulbenkian.
O virtuosismo da pintura de Stoskopff é difícil de alcançar, mas ainda assim é surpreendente a luz e a cor obtida neste vídeo, devido ao trabalho de encenação e por ter sido filmado em 16mm. O final do filme é protagonizado por Pedro Amaral, em homenagem ao pintor que realiza o que deverá ter sido já desejo de muitos através os séculos: provar um pouco do banquete disposto à sua frente.

Outros vídeos recentes que encenam a Natureza Morta reportam-nos igualmente de imediato para o universo da pintura: como é o caso da obra de Suzanne Themlitz (Still Live, 2007) em que vemos as mãos da artista comporem o cenário desta muito viva natureza morta; outra, anterior, é de Sam Taylor-Wood (Still Live, 2001) e encena o “tempus fugit” directamente aplicado ao orgânico em processo de putrefacção (tornado visível) versus a implacável imutabilidade da caneta de plástico. A noção de “still” ou “morta” destas naturezas torna-se incongruente nos três vídeos.

Or, depuis à peine un quart de siècle, une autre offensive du lisse est en train de bouleverser à nouveau le monde. C’est évidemment celle du númérique.
Rouillé, André, L’ère du lisse, www.paris-art.com, Editorial numero 305, Mars 2010

Podemos arriscar “arrumar” a pintura do lado do “estriado” e o vídeo do lado do “liso”. Mas ainda assim, o vídeo Sem título (Natureza morta), tem muita textura e, na era do imaterial, tende para o “estriado”. A pintura como superfície plana praticamente deixou de ser plana e tornou-se num objecto, a sua presença alterou-se no cenário do incorpóreo.
Vivemos no século XXI. E é parecido com o que era outrora projectado pela ficção científica. Anda no ar uma desconfiança em relação às novas tecnologias, ou pelo menos um entusiasmo mais reservado? Há sem dúvida uma maior consciência e reconhecimento em relação às possibilidades e limitações da sofisticação tecnológica, no que nos pode beneficiar ou iludir.


Catarina Marto



Notas Biográficas:
Sara & André 
Nascidos em Lisboa (1980 e 1979), onde vivem e trabalham, têm formação em, respectivamente, Cenografia na Escola Superior de Teatro e Cinema, Lisboa (1999-2005) e Artes Plásticas na ESAD Caldas da Rainha (1999-2005). Expõem regularmente desde 2005. Exposições individuais: Sara & André, 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa 2008; Sara & André’s Foundation, Rosalux, Berlim 2007; Sara & André, PÊSSEGOpráSEMANA, Porto 2007. Projectos Individuais: André & Sara, curadoria de Lourenço Egreja, Smallbox28, Pavilhão 28, Lisboa, 2009; Painting and Other Stories, curadoria de Paco Barragán, Project Room Arte Lisboa, 2008; 31-1-2, R. Das Flores 55, Lisboa, 2008; 1 Obra, 1 Artista, 1 Mês, Escola Superior de Dança, Lisboa, 2006. Residências: ZDB Dezembro de 2008 a Março de 2009; Centro Cultural de Idanha-a-Nova, Maio de 2006. Representados em diversas colecções.

Gonçalo Pena (Lisboa, 1967) é licenciado em Belas Artes-Pintura pela ESBAL (1993) e titular do Mestrado em Ciências da Comunicação pela UNL (2001). Entre 1993-2004 distinguiu-se como ilustrador em Jornais, Semanários e Revistas (Independente, o Público, Ler, Livros, Egoísta e outros) - Single Ilustration Award pela Society for News Design em 2001. Foi docente na E.S.A.D. Caldas da Rainha entre 1996 e 2005, de onde saiu para dedicar-se ao seu trabalho como artista plástico. Desde essa data vive e trabalha entre a Alemanha e Portugal. Exposições Individuais: “Salão de Outono”, Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2008; Galeria Fúcares - Almagro, Espanha; Galeria Graça Brandão – Porto; “Wi(e)der die Malerei – Rosalux Berlim.