#7 Encontro Videográfico: 16, 17 e 18 de Setembro 



Alexandre Estrela



Light Bridges (2007)vídeo, monitor CRT de 28 polegadas, DVD (PAL), som estéreo / 4:20 min  


Conversa com Pedro Bandeira dia 16, 5ºfeira, às 19h




Encruzilhadas Estereoscópicas


1. Áudio e Visual

Comme la vision, l'écoute est appelée par la Nature, et se prépare dans la chair du corps;(...)
Mikel Dufrenne

A autonomia dos olhos e dos ouvidos pode ter sido uma conquista da técnica. Aparelhos como o fonógrafo e o cinetógrafo[1] iniciaram um processo tecnológico de captura do audível e do visível, armazenando os sentidos desencruzilhados. A escuta sem a óptica. A visão sem a acústica. No ambiente digital, apesar do computador insurgir-se como o meio (medium) que incluí todos os meios, tratamos, (re)cortamos e montamos o som e a imagem em momentos e, por vezes, software diferenciados. Mesmo a timeline dos programas de edição vídeo mais avançados optam frequentemente por apresentar estes dois elementos separadamente. A consequência mais óbvia desta fisiologia repartível foi tornar disponível às invenções técnicas os sentidos, agora quase inteiramente manipuláveis. Ao propor uma sincronia histórica entre a fonografia e o cinema, Friedrich Kittler coloca a possibilidade, ou mesmo a necessidade, de pensarmos uma arqueologia do áudio-visual, recusando assim a hegemonia presencial da imagem[2]. Mas apesar de diferenciadas, estas grafias técnicas gravaram e reproduziram, essencialmente fragmentado o tempo[3].


2. Síntese ao Sol

estereoscopia: técnica fotográfica pela qual se obtém uma sensação de relevo dada pela fusão numa única imagem de duas fotografias do mesmo objecto tiradas de pontos diferentes.

A Téléthèque recebe a obra videográfica “Light Bridges” (2007) de Alexandre Estrela, proporcionando uma experiência materializada dos sentidos (áudio-visual), estrategicamente estereoscópica. O que se vê é um efeito: entre duas imagens fotográficas quase idênticas foi induzido um cross-fade. Ou melhor, uma possibilidade de fazer coincidir vistas da ponte 25 de Abril em Lisboa e da Golden Gate em São Francisco. Alinhados ao sol e à ponte, os stills animam-se, considerando o desenho da linha-ponte o trajecto para o cross do fade. O vídeo é, na verdade, uma consequência digital da fusão entre estas duas imagens. Uma passagem que no pico atinge o sol. Ao sol também se dirige o som. Os registos sonoros das duas pontes harmonizam-se na nota Sol no momento exacto em que o efeito videográfico percorre esse pico. E, deste modo, ao Sol, estrela transcendental que não pertence ao mundo terrestre, se imprime uma espécie de empiricidade ritualizada da técnica e das possibilidades de manipular os sentidos. Não esqueçamos que a luz solar, fonte do visível, pode faltar. A noite cai e todo o domínio do invisível e do oculto se expressa. Mas também recordemos que a utilidade da luz fez emergir o império da opticidade técnica.


3. Vídeo, Não-Vídeo

Media always already provide the appearances of specters.
F. Kittler

O vídeo, no seu princípio, é banda magnética. Não a película desenrolada numa sequência de fotogramas (still). Aqui reside o paradoxo deste trabalho e a ambiguidade das distinções que se querem estabelecer entre formas e formatos, vídeo e cinema, considerando apenas diferenças tecnológicas. Pois este vídeo é construído pelo não-vídeo. Ou seja, pelo hiato entre duas imagens fotográficas. Pelo não gravado e o não registado, por um lado. Pela repetição de fotogramas, por outro. O artifício do efeito reenvia-nos para os estudos cronofotográficos de Étienne-Jules Marey (1830-1904), importantes para uma genealogia da imagem-movimento, não deixando de apontar que tudo o que vemos pode ser uma fraude. E o som confirma. De facto é da fraude que surge a pirotecnia áudio-visual do presente, bastaria acrescentar os inventos dos tecno-ilusionistas Athanasius Kircher (1602-1680) e Étienne-Gaspard Robertson (1763–1837) para enriquecer o percurso histórico deste show. No entanto o desmantelamento técnico em “Light Bridges” é reflexivo, assim como são os filmes estereoscópios de Ken Jacobs (1930)[4]. Neles está inscrita a proposta de pensarmos o percorrido, o espaço que está entre as coisas, e as passagens que no fundo são metáforas do tempo. Ainda que a repetição do still possa sublinhar uma espécie de ausência de movimento no mundo. Como se a própria ideia de tempo fosse, também ela uma fraude.
Trata-se sobretudo de matéria sensitiva submetida ao conhecimento proporcionado por instrumentos, sobre o qual quaisquer espíritos alienados se transformariam em “criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”[5].

Aida Castro



[1] Inventos de Thomas Edison, respectivamente de 1877 e 1892. Em 1895 os irmãos Lumière apresentavam uma versão do cinematógrafo.
[2] Ou se quisermos da hegemonia do visual; “(...) la civilisation occidentale réserve la priorité à la vue, et le monopole de la vision à l'œil.” Cit. (1991) Dufrenne, Mikel, L’Œil et L’Oreille, Paris, Éditions Jean-Michel Place.
[3] “What phonographs and cinematographs, whose names not coincidentally derive from writing, were able to store was time: time as a mixture of audio frequencies in the acoustic realm and as the movement of single-image sequences in the optical.” Cit. (1999), Kittler, Friedrich A., Gramophone, Film, Typewriter, California, Stanford University Press, p.3.
[4] Alguns filmes recentes deste autor ainda podem ser vistos na exposição “Action Cinema” comissariada por Nuno Rodrigues na Solar | Galeria de Arte Cinemática em Vila do Conde.
[5] Cit. (2001) Arendt, Hannah, A Condição Humana, Lisboa, Relógio D’Água Editores, p. 14. 


Notas Biográficas:
Alexandre Estrela (Lisboa, 1971) tem vindo, desde a década de 90, a desenvolver a sua produção artística no âmbito da arte experimental. O seu trabalho inicial, radicado nas estratégias conceptuais do vídeo enquanto meio, proporcionou a criação de uma linguagem visual própria. No presente, o seu trabalho remete para um questionamento constante da natureza perceptiva da imagem. Fez o mestrado em Artes Plásticas na School of Visual Arts, de Nova Iorque, e o curso de Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Também em Nova Iorque fez uma residência no International Studio and Curatorial Projects (2002-03). Actualmente reside em Lisboa, onde é professor de Audiovisuais na FBAUL desde 2004. Das exposições mais recentes destacam-se as mostras individuais "Viagem ao Meio" (ZDB, 2010), "Motion Seekness" (Culturgest, 2010), Inércia (Meet Factory, 2009), “Putting fear in its place” (Espaço Chiado 8, 2008), “Stargate” (Museu do Chiado, 2006), “Merda” (Centro Cultural Vila Flor, 2006) e “Shooting for a Second I” (ZDB, 2005). Entre outros projectos, mantém uma programação regular de cinema experimental no espaço “Oporto”, em Lisboa.

Pedro Bandeira (1970), arquitecto (FAUP, 1996), é professor auxiliar no Departamento de Arquitectura da Universidade do Minho. Em 2000 concluiu o Mestrado Metropolis (UPC/CCCB Barcelona) com a dissertação "Apenas o Mundo, Hoje, Onde as Revoluções são Impossíveis — Da Ilusão à Desilusão de Poucos Imaginários de Arquitectura entre os Anos 60 e 70". A convite do Instituto das Artes e do Ministério da Cultura, representou Portugal na Bienal Internacional de Arquitectura de Veneza (2004) e na Bienal Internacional de arquitectura de São Paulo (2005). É autor de Projectos Específicos para um Cliente Genérico (Porto: Dafne, 2006) - uma antologia de trabalhos desenvolvidos entre 1996 e 2006. Em 2007 concluiu a tese de doutoramento sob o título "Arquitectura como Imagem, Obra como Representação: Subjectividades das Imagens Arquitectónicas".  


Agradecimento: MARZ - Galeria